sábado, 30 de julho de 2016

Por que o MANICOMICS marcou época?






Antes de mais nada vamos colocar as coisas em perspectiva: Hoje as possibilidades de impressão e publicação de modo independente são inúmeras. É possível fazer uma edição por demanda, é possível publicar material de luxo com capa dura, verniz, caixinha especial, formatos widescreen, é possível fazer capa e miolo colorido, tudo isso a preços viáveis, principalmente se houver um esquema de venda amarrado como crowdfunding ou sites de venda. É possível publicar tudo apenas online de graça em blogs ou sites , e em alguns casos é possível publicar e ser remunerado por isso. Não estou dizendo que agora nos anos da década de 2010 seja baratinho ou seja moleza editar ou publicar qualquer coisa, entretanto é infinitamente mais fácil que nos anos da década de 1990, quando começa nossa história.
 
Existiam publicações independentes feitas de maneira profissional impressas offset, mas esse material era mais caro se produzir e mais caro de distribuir e a grande maioria dos produtores de material independente não tinha esse tipo de facilidade. Os valores eram proibitivos para uma produção independente.

Em Fortaleza, desde 1985 mais ou menos, o PIUM, jornalzinho da Oficina de Quadrinhos da Universidade Federal do Ceará era produzido na gráfica da UFC, a Imprensa Universitária. A publicação, impressa em offset, trazia matérias entrevistas e produção de quadrinhos dos alunos e professores da Oficina de Quadrinhos. Mas veja, havia uma instituição (a Universidade Federal) bancando a produção do PIUM, isto não nos permite qualificá-lo como "fanzine" ou como "produção independente", que como bem diz o nome trata-se de (fã + magazine) uma produção desvinculada dos grandes meios de produção ou instituições. O custo integral dessas publicações sai exclusivamente do bolso de seus autores/produtores.

Estreando no Brasil em 1965 com o boletim de ficção científica feito por Edson Rontani chamado "FICÇÃO", os fanzines eram impressos e distribuídos artesanalmente, inicialmente por uso de mimeógrafo e posteriormente de modo xerografado. Os seriados das matinês, os quadrinhos antigos, com personagens que não estavam mais nas bancas de revistas, ganhavam o mundo nas capas e páginas de publicações como Historieta (Oscar Kern), Valdir Dâmaso (Gibisada), O Castelo das recordações (José Magnago) e Grupo Juvenil (Jorge Barwinkel). 


Especificamente nos anos 80 e 90 proliferaram os fanzines de música e os de estética punk. Embora algumas dessas publicações possuíssem um cuidado editorial, uma maior atenção às informações e imagens, a grande maioria era feita de modo grosseiro, talvez pelo próprio contexto do universo Punk ou do Heavy Metal. Acontece que essa estética Punk/Metaleira ficou no imaginário popular associada à produção fanzineira. Os fanzines desse tema eram muitos e todo bom apreciador de som pesado em algum momento se deparava com essa produção.

Meados dos anos 90 os RPGs começam a ganhar popularidade no Brasil e à partir do Pergaminho (editado por mim e pelo Afrânio Bezerra de Souza) considerado o primeiro fanzine de RPG do Brasil os Rolling Playing Games entram no circuito da fanzinagem. Como Afrânio trabalhava com design e programas gráficos, o Pergaminho era editado no computador, depois tinha as matérias impressas, depois recebia as ilustrações (que eram reduzidas em xerox e coladas nos espaços vazios), recebia as páginas de HQs também reduzidas em xerox e coladas no boneco (nota: scanner não era coisa simples de conseguir) e após todo esse processo era reproduzido em xerox. 

Junto com Fernando Lima, produzi também o Relatório da Situação, o fanzine informativo do Grupo Avançado, clube de Ficção Científica e Jornada nas Estrelas que entrou para a história do movimento trekker sendo citado em livros e artigos deste tema. 

Essas experiências com o Pergaminho e com o Relatório da Situação, ambos com seu visual clean, sem dúvida influenciaram o surgimento do Manicomics. Mas o fato é que: Havia uma forte preconceito com fanzines.

Os leitores, graças a uma política mais democrática de importação de material impresso, tinham acesso a revistas e livros importados. Era possível adquirir numa banca no centro de Fortaleza, por exemplo, a revista Starlog  — que era um fanzine americano feito por fãs de Sci-Fi. Materiais gringos de alta qualidade estavam inundando as bancas e as prateleiras de quem tinha algum conhecimento da língua inglesa. Todos esses leitores de material importado ajudavam a difundir o valor da qualidade gráfica de um produto. Somado a isso, lembre-se que a estética punk era feita de sujeira, colagens descuidadas, letras garranchudas, logotipia quase ilegível, linguagem de grafitagem de gangue tudo isso resumido na pior acepção do termo poluição visual. Aqui vale uma ressalva, claro que é possível usar todos esses elementos eram bom design e boa comunicação visual para seu público específico, infelizmente não o eram para o grande público, com isso todas as vezes que alguém queria denegrir um projeto de comunicação visual usava a expressão: "parece um fanzine". Isso pegava mal para os fanzines e ajudou a solidificar na cabeça dos leigos que se era fanzine era obrigatoriamente: ruim, sujo, malfeito, sem critério, ilegível.


A Logotipia inicial do Manicomics foi desenvolvida por Daniel Brandão e Eduardo Ferreira. A parte de editorial, organização dos textos, diagramação interna foi feita por mim junto com o Eduardo Ferreira. O Daniel Brandão assinava como editor, mas o conselho editorial (Daniel, Geraldo Borges e JJ Marreiro) decidia o que entrava e o que não entrava em cada edição. Desde o início existiam algumas preocupações que eram partilhadas por toda a equipe:
-Fazer um produto limpo, legível, com boa comunicação visual
-Publicar histórias coesas, autocontidas, fáceis de ler e entender
-Colocar o menor preço de capa possível para que o maior número de pessoas pudesse comprar
-Procurar a melhor xerox para que traço e texto ficassem legíveis e apreciáveis
-Reunir artistas cujo objetivo fosse contar histórias de modo claro e objetivo
(Neste ponto vale lembrar que os colaboradores do Manicomics foram um dos principais motivos para o contínuo progresso da qualidade da publicação. Cada colaboração que chegava era uma nova inspiração e um novo estímulo. Aldairton, Antonio Eder, Caetano Neto, Denilson Albano, Edvanio Pontes, Edvan Bezerra, E.C.Nickel, Falex, Gian Danton, Jean Okada, Lene Chaves, Ronaldo Mendes, Wagner Francisco estavam entre os autores qua ajudaram o Manicomics a voar tão alto).

Dentro desse contexto no qual a linguagem da época era a sujeita e o descuido, no qual todo o material independente era feito em xerox, algumas bastante descuidadas, o Manicomics surgia como uma lufada agradável de vento num dia terrivelmente quente. Era como ver a esperança em meio a um mundo de trevas. Não consigo contar —ao mostrar o Manicomics— quantas milhares de vezes ouvi de leitores, artistas, jornalistas e críticos a frase: "Cara, isso é muito bom! Nem parece um Fanzine!"